terça-feira, 26 de julho de 2016



O QUE NEM SEMPRE SE VÊ

O domingo 24 de julho de 2016 foi marcante para o mundo do ciclismo por duas razões: realização da etapa conclusiva do Tour de France, vencido por Chris Froome, e a primeira edição do Audax Vale do Caí, com saída e chegada em Montenegro – RS,  depois de atravessar os municípios de Brochier, Maratá, São José do Sul, Pareci Novo, Salvador do Sul, Barão, Tupandi, Bom Princípio e São Sebastião do Caí. Uma maratona sobre a bicicleta, passando por estradas nem sempre em condições ideais, mas com tudo aquilo que o bom randonneur procura.
Quem gosta de enfrentar as provas tipo BRM faz a sua inscrição através do site de algum clube promotor do evento e simplesmente espera chegar o dia para curtir uma pedalada longa, aproveitando a paisagem e a companhia dos amigos velhos e novos. Pura diversão, com um toque de dificuldade às vezes, mas que valoriza o trajeto e proporciona sempre uma experiência pessoal muito gratificante. O que muitos não sabem é que para fazer acontecer um brevet, um grupo grande de pessoas deve ser mobilizado e um planejamento minucioso deve ser elaborado. Em relação ao Audax do Vale do Caí, a Sociedade Audax de Ciclismo (SAC) de Porto Alegre contou com a consultoria do grupo Pedal na Estrada e com o suporte institucional e operacional da Associação Ciclística Montenegrina (ACICLOMONT).
Tudo começa pela definição de um roteiro que seja o melhor possível para os ciclistas, isto é, seguro e interessante do ponto de vista esportivo, cultural, turístico, paisagístico e humano, pela possibilidade de interagir com a população de cada lugar. Sim, por que um evento com essa dimensão causa um impacto significativo em comunidades pequenas e não passa despercebido. Impacto visual, pelo menos. Muitas pessoas estão vendo pela primeira vez aquele desfile de ciclistas equipados com capacetes, coletes refletivos, óculos e luvas, pilotando bicicletas especiais, em grupos ou isolados, visivelmente focados em cumprir um objetivo: percorrer um caminho desconhecido para muitos, dentro do limite de tempo que a regra do Brevet Randonneur Mondiaux BRM estebelece. Basta prestar atenção ao semblante dos ciclistas: uns descontraídos, outros mais tensos, mas todos perseguindo uma meta de superação. E segue a caravana ultrapassando obstáculos. Em 200 kilômetros de percurso, 5 ou 6 km de estrada de terra é um tributo muito barato a pagar pelo que se recebe. Algo em torno de 3% de IPP (Imposto sobre o Prazer de Pedalar). Afinal, esse é o panorama da região colonial do sul do Brasil que muitos querem conhecer e por isso aceitam o “desafio”. Sabor de aventura, sabor de “cuca”, sabor de bergamota... Quem acha ruim pedalar (de speed) por 2 km de terra deve refletir sobre esses imigrantes que estão ali há cinco gerações produzindo - e transportando - alimentos para as cidades. Além do mais, França e Itália realizam provas clássicas de ciclismo profissional competitivo em estradas com trechos de terra e pedra.
Outro aspecto que deve ser destacado na realização de um brevet é o operacional. A atividade inicia na véspera. Tarde de briefing, noite de jantax. Ninguém pode reclamar de falta de informações. O briefing serve justamente para alertar sobre as condições das estradas, pontos que oferecem algum risco, locais onde se encontra descanso, abastecimento, mais informações, etc. Logo em seguida, um jantax para confraternizar e garantir uma boa reserva de energia para o dia seguinte. Depois é cama, por que a jornada começa de madrugada.
Às seis horas da manhã começam a chegar os participantes. Identificação, vistoria dos equipamentos obrigatórios, últimos preparativos... Quem vai imaginar que a subestação de energia elétrica do local de largada do Audax vai explodir durante a noite e causar algum transtorno na recepção dos ciclistas? Improvisa-se na base da lanterna mesmo. Nem todos percebem essa baita encrenca, sinal de que tudo está funcionando dentro da normalidade. A sorte está a favor. O tempo está excepcionalmente ótimo, no meio de uma seqüência de dias chuvosos! O dia já está clareando. Largou.
Agora é despachar as equipes para os Postos de Controle e para os Postos de Apoio, aguardar a passagem dos ciclistas, fazer a coisa acontecer. Carregar água, frutas, equipamentos para estruturar o PC e “se mandar” para chegar antes do pelotão. E tem ciclista voador que chega ao PC antes mesmo deste ter sido aberto! Tudo bem que é brevet, mas de bicicleta, não de avião! Enquanto isto outros grupos se revezam para locais em que pode ocorrer confusão quanto à direção a seguir. É preciso evitar a desorientação. O mapa da rota é bastante didático e fala por si, mas a presença de voluntários pelo caminho também é importante para troca de informações entre participantes e organizadores. Assim o ciclista se sente mais seguro e amparado, caso haja necessidade de pedir socorro por causa de acidente ou problema mecânico. A estrutura da equipe tem limitações, mas faz-se o possível. E essa movimentação dura o tempo todo, com as condições de mobilidade e de comunicação que se tem.
Num brevet de inverno a noite chega cedo. Uns já finalizaram, outros ainda estão na estrada correndo contra o tempo, único fator que interessa para homologar o BRM. Aí fura um pneu que tem de ser consertado no escuro. Se tiver um ou mais parceiros acompanhando, melhor. Se não, é resolver sozinho mesmo. Subir na bike e continuar. Vem aquela câimbra outra vez... Falta pouco. Vou conseguir. Será? Quando estoura o limite de tempo nem todos conseguiram chegar. Vai ficar para uma próxima oportunidade. Tudo bem. Tomara que seja tão legal novamente.

Aí, para encerrar a parada, ouvir de um ciclista que não tem nenhum motivo para fazer média, não tem nenhum motivo para agradar um simples voluntário desconhecido, chegar todo estropiado depois de pedalar durante 14 horas e dizer satisfeito: “pô... vocês estão de parabéns... que organização...”