O QUE NEM SEMPRE SE VÊ
O domingo 24
de julho de 2016 foi marcante para o mundo do ciclismo por duas razões:
realização da etapa conclusiva do Tour de France, vencido por Chris Froome, e a
primeira edição do Audax Vale do Caí, com saída e chegada em Montenegro – RS, depois de atravessar os municípios de
Brochier, Maratá, São José do Sul, Pareci Novo, Salvador do Sul, Barão,
Tupandi, Bom Princípio e São Sebastião do Caí. Uma maratona sobre a bicicleta,
passando por estradas nem sempre em condições ideais, mas com tudo aquilo que o
bom randonneur procura.
Quem gosta de
enfrentar as provas tipo BRM faz a sua inscrição através do site de algum clube
promotor do evento e simplesmente espera chegar o dia para curtir uma pedalada
longa, aproveitando a paisagem e a companhia dos amigos velhos e novos. Pura
diversão, com um toque de dificuldade às vezes, mas que valoriza o trajeto e proporciona
sempre uma experiência pessoal muito gratificante. O que muitos não sabem é que
para fazer acontecer um brevet, um
grupo grande de pessoas deve ser mobilizado e um planejamento minucioso deve
ser elaborado. Em relação ao Audax do Vale do Caí, a Sociedade Audax de
Ciclismo (SAC) de Porto Alegre contou com a consultoria do grupo Pedal na
Estrada e com o suporte institucional e operacional da Associação Ciclística
Montenegrina (ACICLOMONT).
Tudo começa
pela definição de um roteiro que seja o melhor possível para os ciclistas, isto
é, seguro e interessante do ponto de vista esportivo, cultural, turístico, paisagístico
e humano, pela possibilidade de interagir com a população de cada lugar. Sim,
por que um evento com essa dimensão causa um impacto significativo em
comunidades pequenas e não passa despercebido. Impacto visual, pelo menos. Muitas
pessoas estão vendo pela primeira vez aquele desfile de ciclistas equipados com
capacetes, coletes refletivos, óculos e luvas, pilotando bicicletas especiais,
em grupos ou isolados, visivelmente focados em cumprir um objetivo: percorrer
um caminho desconhecido para muitos, dentro do limite de tempo que a regra do Brevet Randonneur Mondiaux BRM estebelece. Basta prestar atenção ao
semblante dos ciclistas: uns descontraídos, outros mais tensos, mas todos
perseguindo uma meta de superação. E segue a caravana ultrapassando obstáculos.
Em 200 kilômetros de percurso, 5 ou 6 km de estrada de terra é um tributo muito
barato a pagar pelo que se recebe. Algo em torno de 3% de IPP (Imposto sobre o
Prazer de Pedalar). Afinal, esse é o panorama da região colonial do sul do
Brasil que muitos querem conhecer e por isso aceitam o “desafio”. Sabor de
aventura, sabor de “cuca”, sabor de bergamota... Quem acha ruim pedalar (de speed) por 2 km de terra deve refletir
sobre esses imigrantes que estão ali há cinco gerações produzindo - e
transportando - alimentos para as cidades. Além do mais, França e Itália
realizam provas clássicas de ciclismo profissional competitivo em estradas com
trechos de terra e pedra.
Outro aspecto
que deve ser destacado na realização de um brevet
é o operacional. A atividade inicia na véspera. Tarde de briefing, noite de jantax. Ninguém pode reclamar de falta de
informações. O briefing serve
justamente para alertar sobre as condições das estradas, pontos que oferecem
algum risco, locais onde se encontra descanso, abastecimento, mais informações,
etc. Logo em seguida, um jantax para confraternizar e garantir uma boa reserva
de energia para o dia seguinte. Depois é cama, por que a jornada começa de
madrugada.
Às seis horas
da manhã começam a chegar os participantes. Identificação, vistoria dos
equipamentos obrigatórios, últimos preparativos... Quem vai imaginar que a
subestação de energia elétrica do local de largada do Audax vai explodir
durante a noite e causar algum transtorno na recepção dos ciclistas?
Improvisa-se na base da lanterna mesmo. Nem todos percebem essa baita encrenca,
sinal de que tudo está funcionando dentro da normalidade. A sorte está a favor.
O tempo está excepcionalmente ótimo, no meio de uma seqüência de dias chuvosos!
O dia já está clareando. Largou.
Agora é
despachar as equipes para os Postos de Controle e para os Postos de Apoio,
aguardar a passagem dos ciclistas, fazer a coisa acontecer. Carregar água,
frutas, equipamentos para estruturar o PC e “se mandar” para chegar antes do
pelotão. E tem ciclista voador que chega ao PC antes mesmo deste ter sido
aberto! Tudo bem que é brevet, mas de
bicicleta, não de avião! Enquanto isto outros grupos se revezam para locais em
que pode ocorrer confusão quanto à direção a seguir. É preciso evitar a
desorientação. O mapa da rota é bastante didático e fala por si, mas a presença
de voluntários pelo caminho também é importante para troca de informações entre
participantes e organizadores. Assim o ciclista se sente mais seguro e
amparado, caso haja necessidade de pedir socorro por causa de acidente ou
problema mecânico. A estrutura da equipe tem limitações, mas faz-se o possível.
E essa movimentação dura o tempo todo, com as condições de mobilidade e de
comunicação que se tem.
Num brevet de inverno a noite chega cedo.
Uns já finalizaram, outros ainda estão na estrada correndo contra o tempo,
único fator que interessa para homologar o BRM. Aí fura um pneu que tem de ser
consertado no escuro. Se tiver um ou mais parceiros acompanhando, melhor. Se
não, é resolver sozinho mesmo. Subir na bike e continuar. Vem aquela câimbra
outra vez... Falta pouco. Vou conseguir. Será? Quando estoura o limite de tempo
nem todos conseguiram chegar. Vai ficar para uma próxima oportunidade. Tudo
bem. Tomara que seja tão legal novamente.
Aí, para
encerrar a parada, ouvir de um ciclista que não tem nenhum motivo para fazer
média, não tem nenhum motivo para agradar um simples voluntário desconhecido,
chegar todo estropiado depois de pedalar durante 14 horas e dizer satisfeito: “pô... vocês estão de parabéns... que
organização...”